Imagem de fundo (Canva): Kukeidash Madrasah. Construída por volta do século 16, é uma escola islâmica histórica, conhecida como 'madraça' em muitos países de língua árabe. Está localizada em Tashkent, a capital do Uzbequistão, país da Ásia Central.

Mico, o animal de estimação do imigrante – Eita miséria

Pra não dizer que só brasileiro paga “singe”, vou contar um dos grandes de um autêntico francês imigrante em Québec.

O “lyonnais” Olivier tinha acabado de desembarcar em pleno inverno québequense pra trabalhar como engenheiro na recém-inaugurada filial “montréalaise” de uma megaempresa de design industrial.

É óbvio que o idioma não seria um obstáculo pra ele, né? Dããããã!

Bom, mas isso até contratarem Vincent para integrar a mesma equipe de Olivier.

Um detalhe: Vincent era um “québécois pure laine de la Gaspé”.  

Vizinhos de “bureau”, foram apresentados logo no primeiro dia. No entanto, dada a sua timidez, Olivier pouco interagia.

No correr dos meses, Vincent, que era responsável pelas compras e abastecimento do setor, falava muito ao telefone e nestas conversas repetia com frequência uma expressão corriqueira em Québec: « j’ai de la misère »

No final do primeiro semestre, um bônus inesperado pingou na conta do Desjardins dos funcionários. A galera já queria marcar uma “5 à 7″ na ” microbrasserie du coin”. Todos estavam mais sorridentes que banguela em dentista. Menos o nosso amigo francês. Circunspecto, nada disse.

Aproveitando um momento de calmaria no bureau do colega québequense, que, claro, era o cabeça da “party”, Olivier tomou coragem e bateu na porta do vizinho:

– Com licença, Vincent. Poderia falar contigo um minuto?

– Claro, entre, francês…falou amigavelmente.

Com um ar de seriedade inabalável, Olivier pediu pra se sentar.

Nitidamente constrangido, olhando para todos os lados como que pra ter a certeza de que ninguém os ouviria, no que era acompanhado pelo olhar do intrigado Vincent, o francês disse, quase que murmurando:

– Desculpe-me, mas como somos vizinhos de « bureau », acabo ouvindo algumas de suas conversas…

– Ah, sem problemas, estas salas só com divisórias tiram a nossa privacidade. Ainda bem que somos solteiros, né? e soltou uma gargalhada de assustar o palhaço do “It”.

Mas pelo jeito apenas ele achou engraçado, pois Olivier continuou sem esboçar nenhuma reação:

– … e não pude deixar de ouvi-lo falar de seus problemas financeiros…

– Ah, é? Todo mundo tem lá as suas “hypothèques” pra pagar, né não?… mas desta vez preferiu apenas dar um sorrisinho amarelo.

Olivier deu uma levantada para ver se ninguém estava com as “oreilles tendues”. Sentou-se novamente. Tirou então do bolso de sua camisa o seu cartão de débito e, condoído, emendou:

– Acabamos de receber este bônus, como moro sozinho e não tenha grandes despesas, queria emprestá-lo pra você sair « de la misère »!

Num primeiro momento, Vincent olhou para Olivier sem nada entender, mas não bastaram que 5 segundos para ele explodir numa gargalhada misturada com tosse e alguns “pets” involuntários.

Olivier, acreditando que o québequense estava rindo de nervoso, completou:

– …e não precisa se preocupar, pague quando e como puder!

Se traduzirmos « j’ai de la misère » direto pro português, o resultado ficará assim:

« Eu tenho miséria! », o que logicamente poderia ser interpretado como : ‘tô falido’, ‘tô na merda’, ‘tô fudido’, ‘tô no vermelho’, ‘tô endividado’, variando a entonação conforme aumente ou diminua o saldo negativo do pobre devedor.

Ou seja, o nosso benévolo “chum” francês tinha toda razão para estar preocupado com o miserável do Vincent. Concorda?

Acho melhor não!

Em québequês, “avoir de la misère” não tem nada a ver com estar endividado, mas tão-somente ‘ter dificuldade com alguma coisa’. Por exemplo:

— J’ai de la misère avec les filles.

— J’ai de la misère à te croire.

— Ils ont eu de la misère à le convaincre qu’il avait tort.

— J’ai beaucoup de [la] misère avec le québécois. *

* Eventualmente, o ‘la’ é suprimido para dar mais fluidez a fala.

Ou seja, nesta expressão québequense, a palavra misère, “miséria”, é sinônimo de dificuldade.

E Olivier, por onde anda?

Pois é, a última vez que o nosso “cousin” francês foi visto, estava pastoreando ovelhas albinas no interior do Uzbekistão.

Que miséria!

Sinônimos em:

Português: ter dificuldade; ser uma anta ou uma porta para fazer ou para entender alguma coisa.

Francês: avoir de la difficulté; avoir du mal; avoir de la peine à faire quelque chose.

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E você, já passou por algum mico de imigrante? Conte pra gente. Prometemos manter o anonimato.

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